sexta-feira, 16 de maio de 2008

De Barcelos para Galáxia dos Sonhos...



De: Barcelos
Portugal
14 de Maio de 2008


Para: Estrela Luz
Sistema Esperança
Galáxia dos Sonhos




Querida Avó,

Escrevo-te esta carta com o desesperado desejo de exterminar parte deste sentimento assassino que me acompanha, desde que decidiste mudar-te para essa nova casa. Espero antes de mais que tudo tenha corrido como previsto, e que nenhum incidente tenha de alguma forma infernizado as mudanças. Pelo que conheço de ti, certamente que não. Apenas agora te escrevo, pois calculei que estivesses ocupada, sem tempo para lamentações inconformadas e preocupações inúteis.
Decidi, portanto, contar-te em jeito de desabafo, o que vai acontecendo neste teu eterno Portugal. Seguem-se algumas singelas palavras que juntei numa amálgama de linhas corrompidas de perpétua saudade. Sei que seguramente terás a resposta para todos os meus inacabáveis dilemas.
Talvez não te lembres da Sara… Já passou algum tempo desde que te mudaste. Sim, aquela Sara que enternecia com um olhar que roubava ao sol toda a sua luz e à lua todo o seu encanto. Não havia chama mais forte do que aquela daquele pequeno anjo que todas as manhãs me inundava na alegria de um sorriso que pairava suave, como um perfume, no alpendre da nossa casa. Era ela, frágil, branca, cativante, o meu sonho da mais perfeita perfeição. Numa humilde genialidade, a Sara foi construindo aos poucos um pequeno palácio de virtude intelectual e moral, sempre com cuidadosos ornamentos da mais pura sinceridade e bondade.
O seu sonho era salvar o mundo. E, quando alguém o tentava desmoronar com um pessimismo invejoso, condenando-o ao fracasso, de imediato se deparava com um angelical e persistente protesto de dois olhos de fogo furioso ateado pela ameaça de extinção. Mas os seus propósitos não eram de todo desmedidos nem insensatos. Tinha consciência de toda a dificuldade daquilo a que chamava “a sua missão”. Todo o seu raciocínio era de facto brilhante. Afirmava que a vida teria todo sentido se optássemos pela entrega aos outros. Cada um, na sua pequena esfera, tinha o papel de assegurar, dentro das suas possibilidades, o bem-estar de todos os pontos que a constituem. E dizia com uma simplicidade brilhante, “só quando todos acreditarmos que é possível e lutarmos, juntos, tudo o que quisermos acabará por mudar”. Enquanto insistirmos em nos conformarmos e aceitarmos como inevitável uma realidade sórdida, mero resultado da animalesca necessidade de poder e domínio que tão bem define o ser humano racional, apenas contribuímos para o célere naufrágio do nosso pequeno mundo.
Nenhuma refutação era lançada, quando, numa pose de princesa grega, sentada na sua insignificante cadeira de rodas, Sara expunha envolta numa calma majestosa, estas e muitas outras nobres ideias. Tudo nela era um fascínio comovente.
Talvez toda a fonte desta devoção pela minha pequenina princesa fosse o diário testemunho da cruel e desumana vida que o bárbaro reino lusitano garantiu que não lhe faltasse. Pois ela, indefesa, presa numa masmorra andante, torturada pela veneração prestada por todo o seu povo aos mais revoltantes preconceitos de uma mentalidade geral limitada pela pobreza de espírito e valores morais, teimava, como que uma birra de criança, em ignorar toda a adversidade que a asfixiava. E assim abraçou a vida, libertando-se de toda a limitação, encontrando a virtude onde todos os outros viam aberração, anomalia, desgraça, defeito.
Sabes, Avó, apesar da circundante insistência no seu inevitável fracasso, a Sara formou-se em medicina. Especializou-se na área de psicologia e psiquiatria e é hoje a fundadora do mais bem sucedido centro de recuperação desta terra de navegadores e conquistadores. A maioria das inúmeras pessoas que a procuram carecem furiosamente de ajuda para combaterem o ataque insano desta sociedade em que chafurdamos. É tenebrosa a crueldade deste pequeno pais à beira mar plantado.
Vemo-nos quase diariamente. Aquela pequena é o vício que adoça a minha existência. Eu simplesmente não consigo compreender a sua natureza. Quando me conta as atrocidades em que embate sempre que uns olhos afogados em desespero, trémulos de uma dor arrepiante entram pela porta do seu consultório, pergunto-me como aguenta aquela menina tão branca, tão pequena, tão maltratada pela vida, todos aqueles dramas. “Vejo de tudo. Discriminação racial, sexual, religiosa, etária… homossexuais, mulheres e crianças violentadas e exploradas, pessoas com deficiências a nível físico ou motor, de outra raça, religião, etnia, e tudo quanto possas imaginar. Aparecem-me psicologicamente destroçadas, muito afectadas com depressões, variadíssimos distúrbios, e o pior, tendências suicidas… É horrível… São tão jovens, tão belos, um potencial enorme abafado por uma sociedade incrivelmente homicida. Só precisam que alguém lhes dê a mão e ajude a atravessar este pântano traiçoeiro em que vivemos”. E se atónita lhe pergunto, porquê ela, aquela pequena das minhas manhãs, se não passara já o suficiente para agora suportar tal fardo, imediatamente riposta, com aquela doce fúria idealista “para quê viver a fugir do sofrimento se ele existe por toda a parte? Não posso negar quem sou, aquilo em que acredito. De certa forma, estou grata àqueles que me fizeram sofrer. Só assim posso agora ajudá-los a eles e a muitos outros que como eu são de alguma forma diferentes do “normal” e não descobriram ainda a enorme virtude que isso é. Esta é a minha forma de salvar o mundo. Lembras-te, é a minha missão! De outra forma, nada faria sentido…”. E ficamos ali, num banco de jardim, no húmido salgado de uma rocha na praia, num autocarro transpirado de gente apressada, na varanda da sua casa…a agradecer ao sol que se deita preguiçosamente, o maravilhoso espectáculo de cores que nos acaricia o pensamento ansioso de revolta e indignação.
E desta forma, minha querida Avó, esta pequena toma conta de mim e de tantos outros. Mas explica-me por favor, porque é que tudo isto acontece? Por mais que busque impacientemente uma explicação para a razão de toda esta balbúrdia, há muito que nem a minha amada ciência é capaz de solucionar esta minha incompreensão da sociedade que me rodeia. Gostava apenas de perceber, mas é impossível.
Depois de conquistar o seu lugar na Terra, o Homem partiu à sua descoberta e preenchimento. Vieram as necessidades intelectuais, do culto do eu enquanto ser incomparavelmente superior aos demais. Os resultados destas foram aproveitados para progressivamente aperfeiçoar as respostas às necessidades práticas. Da pedra, passando pelo fogo, à espada seguiram-se as armas de fogo, já ultrapassadas pelas nucleares. É inevitável a competição entre o homem, a ânsia de dominar, somos animais. O que é, quanto a mim, incompreensível, é após longa existência, o homem não ter sabido aprender a usar o grande dom da razão, que o distancia de tudo o que o rodeia, para controlar de algum modo os seus ímpetos irracionais.
Neste país que tanto amo, vejo homens matarem homens inconscientemente. O metal das palavras, das atitudes, das acções, perfura os ténues peitos dos que de alguma forma não cumprem com o modelo rigidamente estipulado como “normal”. E os resultados são exemplos como as histórias que a pequena Sara me conta ao pôr-do-sol, envolta em lágrimas de fúria ocultas.
E nada disto parece alguma vez vir a mudar, Avó. A sociedade não quer que mude. Por mais que me afaste do pessimismo, a verdade é que anjos como a minha pequena são meras utopias nesta sociedade em que vivo. Aqueles que antes lutaram juntos pela afirmação deste Portugal, preferem, agora, continuar o silencioso extermínio dos seus semelhantes, condenando-os à loucura de um sofrimento absurdo, por não serem o que era socialmente esperado que fossem.
Preciso urgentemente, minha amada Avó, de um mastro firme onde possa agarrar o fio de uma esperança cada vez mais débil, cansada. Quero acreditar que tal como a minha pequena, o homem resistirá ao homem, e encontrará a virtude da simples essência de existir, por si, tal como é.
Sei que terás o conforto de que careço. Por isso recorri a ti, porque penso que tu, nessa terra onde estás agora, poderás de alguma forma consolar tanto desconsolo e responder a este dilema que me atormenta.
Com tristes saudades me despeço, esperançada de que um dia, esta terra em que nasci possa ser dignamente honrada pelos seus, como terra de homens livres, bons… pequenas Saras.
Um abraço afogado em mil beijos de saudade,


Catarina




Catarina Gonçalves, 11ºC

1 comentário:

Fátima Inácio Gomes disse...

Está belíssimo, Catarina. Nada mais há a dizer.