quinta-feira, 28 de junho de 2007

A esperança é a poesia da dor...


Pela voz contrafeita da poesia

Dá-nos os passos os teus passos
de manhã triunfal de cidade à solta
os gestos que devemos ter
quando a alegria descobrir os dedos
em que possa viver toda a vertigem
que trouxer da noite
os primeiros dedos do sonho
do teu sonho nosso sonho mantido
mesmo no mais íntimo abandono
mesmo contra as portas que sobre nós:
em silêncio e noite
em venenosa ternura
em murmúrio e reza
se fecharam já
mesmo contra os dias vorazes
que por todos os lados nos assaltam
e consomem
mesmo contra o descanso eterno
a viagem fácil
com que nos ameaçam vigiando
todo o percurso do nosso sono
interminável sono coração emparedado
no muro cruel da vida
desta que vivemos que morremos
assim esperando
assim sonhando
sonhando mesmo quando o sonho
ignorado recua até ao mais íntimo de cada um de nós
e é o gemido sem boca
a precária luz que nem aos olhos chega
 
Não digas o teu nome: ele é Esperança
vai até aos que sofrem sozinhos
à margem dos dias
e é a palavra que não escrevem
sobre as quatro paredes do tempo 
o admirável silêncio que os defende 
ou o sorriso o gesto a lágrima 
que deixam nas mãos fiéis
 
Não digas o teu nome: quem o não sabe
quem não sabe o teu nome de fogo
quem o não viu entrar na sua noite
de pobre animal doente 
e tomar conta dela
mesmo só pelo espaço de um sonho
 
O teu nome
até os objectos o sabem
quando nos pedem um uso diferente
os objectos tão gastos tão cansados
da circulação absurda a que os obrigam
 
As coisas também gritam por ti
 
E as cidades as cidades que morreram
na mesma curva exemplar do tempo
estão hoje em ti são hoje o teu nome
levantam-se contigo na vertigem
das ruas no tumulto das praças
na espera guerrilheira em que perfilas
o teu próprio sono
                            *
 Ah
onde estão os relógios que nos davam
o tempo generoso
os dedos virtuosos os pezinhos
musicais do tempo
as salas onde o luxo abria as asas 
e voava de cadeira em cadeira
de sorriso em sorriso
até cair exausto mas feliz
na almofada muito azul do sono
 
Onde está o amor a sublime
rosa que os amantes desfolhavam
tão alheios a tudo raptados
pela mão aristocrática do tempo
o amor feito nos braços no regaço
de um tempo fácil
perdulário
vosso
 
Hoje não é fácil o tempo
já não é vosso o tempo
viajantes do sonho que divide
doces irmãos da rosa
colunas do templo do Imóvel
prudentes amigos da vertigem
deliciados poetas duma angústia
sem vísceras reais
já não é vosso o tempo.
 
Noivas do invisível
não é vosso o tempo
Relógios do eterno
não é vosso o tempo
 
                           *
 Impossível
 
Impossível cantar-te
como cantei o amor adolescente
colorindo de ingenuidade
paisagens e figuras reduzindo-o
à mesma atmosfera rarefeita
do sonho sem percurso no real
Impossível tomar o íngreme caminho
da aventura mental
ou imaginar-te pelo fio estéril
da solitária imaginação
 
Tão-pouco desenhar-te como estrela
neste céu infame
dizer-te em linguagem de jornal
ou levar-te à emoção dos outros
pela voz contrafeita da poesia
 
Impossível
 
Impossível não tentar dizer-te
com as poucas palavras que nos ficam
da usura dos dias
do grotesco discurso que escutamos
proferimos
transidos de sonho no ramal do tempo
onde estamos como ervas
pedrinhas
coisas perfeitamente inúteis
pequenas conversas de ferrugem de musgo
queixas
questiúnculas
arrotos comoventes
 
                            *
 Mas de repente voltas
numa dor de esperança sem razão de ser
 
Da sua indiferença
agressivamente as coisas saem
Sentimo-nos cercados
ameaçados pelas coisas
e agora lamentamos o tempo perdido
a dispô-Ias a nosso favor
 
Porque é tempo de romper com tudo isto
é tempo de unir no mesmo gesto
o real e o sonho
é tempo de libertar as imagens as palavra!
das minas do sonho a que descemos
mineiros sonâmbulos da imaginação
 
É tempo de acordar nas trevas do real
na desolada promessa
do dia verdadeiro
 
                               *
 Nesta luz quase louca
que se prende aos telhados
às árvores aos cabelos das mulheres
aos olhos mais sombrios
falamos de ti do teu alto exemplo
e é com intimidade que o fazemos
falamos de ti como se fosses
a árvore mais luminosa
ou a mulher mais bela mais humana
que passasse por nós com os olhos da vertigem
arrastando toda a luz consigo



Alexandre O'Neil

-----------------------------------------------------------------------------------------------

Vislumbro o negro tecto como quem se vicia no manto estrelado do céu. E já não é um negro tecto qualquer. Transmutou-se. Ecrã de movimento veloz transbordado pela cor dos pensamentos. Dependência deliciosa que a muito pouco sabe. Imprescindível, porém. Aniquiladora da inércia; portadora do conforto: a minha porta abre-se para ti amiúde, sem nunca se ter fechado de verdade. E não te atribuo o clamor de que és digna da forma perfeita, porque o meu ‘engenho e arte’ não mo permitem! Trocam-te pela Fé. Mas não eu! És a versão terrena, e como tal a minha predilecta. Estabeleces um laço inquebrantável – de tal forma rijo que, por vezes, desespera quantos tão presos a ti.

Ténue limiar que divide os resignados dos que batem o pé e não se deixam esmagar pela amargura nem pelos óbices com que se deparam, dos que se agarram a ti, vislumbrando o negro tecto como quem se vicia no manto estrelado do céu!

O poema. Pela voz contrafeita da poesia. Elegi-o de entre tantos outros, não por ser o mais belo, o mais complicado ou simples, mas porque me soou a um grito profundo de voz rebelada e sonhadora. Julguei ter perdido todos os cinco sentidos e ter petrificado. E mesmo a minha inspiração desfalece perante a magnitude das palavras, talvez embriagada pelas mesmas.

E estou longe de proceder a uma análise labutada do poema. (O meu texto até se relaciona bastante com ele. Ou pelo menos tive a pretensão disso.) Além de que me ensinaram inteligentemente que definir as coisas é impor-lhes barreiras. Construí-las não é o meu forte. E o meu maior objectivo é revelar esta pequenina relíquia, na quimérica esperança de que toque alguém, tanto quanto a mim.

A citação integral presente no título é A esperança é a poesia da dor, é a promessa eternamente suspensa diante dos olhos que choram e do coração que padece e pertence a Paolo Mantegazza [1831-1910].

A imagem, Esperança I, da autoria de Gustav Klimt [1862-1918].

5 comentários:

Li disse...

Ps - Lembrei-me agora de explicar porque está uma parte do texto salientada. Trata-se da minha parte favorita; considero que é nessa parte do poema que o sujeito poético mais exalta aquilo em que defende. E também porque foi, de todo o poema, a parte mais deliciosa de ser lida.

Li disse...

Eu sei que não ANALISEI o poema, por escrito. Mas isso era estar a mata-lo. fogo. Não preciso de explicar o que ele quis dizer com coração emparedado para perceberem a ideia. right? :D era um comentário sobre o poema... de qualquer das formas...

Li disse...

pronto. eu sei passei o prazo. mas foram só uns minutos. juro. foi o tempo de corrigir incoerências *i'm a little angel* e agora vou parar de comentar antes que fique sem impressões digitais de tanto raspar os dedos nestes botões pretos também denominados teclas.

Fátima Inácio Gomes disse...

A noite de quarta-feira, continua a ser quarta-feira :D

Quanto ao comentário... só posso dizer que deliciada fico eu quando vos vejo assim possuidos pelas musas, sejam Terpsícore ou Calíope!!! :D Obrigada, minha querida, pelo momento. Avassalador!

Cláudia Amorim disse...

!!!!!!!!!